sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Tia Letícia é matéria do Jornal Estado de Minas

Mineira completa 110 anos e relembra histórias de três séculos

Gustavo Werneck -
Publicação: 30/12/2010 10:00 Atualização: 30/12/2010 10:12



Letícia Ferreira de Souza mantém o hábito de rezar o terço todos os dias, diante dos quadros de santos em seu quarto

Bocaiúva – Quando ela nasceu, o Brasil republicano era apenas uma criança, a escravidão, apesar de abolida havia 12 anos, ainda lançava sombras nefastas país adentro e a nova capital de Minas engatinhava entre prédios em construção, ruas poeirentas e sonhos de liberdade. Foi nesse tempo, no apagar das luzes do século 19, que Letícia Ferreira de Souza chegou ao mundo, mais exatamente numa fazenda em Bocaiúva, nas proximidades do Rio Jequitinhonha. Hoje, às vésperas de 2011, com os tradicionais bolo e “parabéns pra você”, cantado por parentes e amigos da comunidade de Cordeiros, onde mora, a 95 quilômetros da sede municipal e 464 de Belo Horizonte, Letícia completa 110 anos, declarando-se “meio surdinha e com a cabeça um pouco ruim”. Fora isso, tem saúde, caminha devagarinho pelo quintal de casa, colhe frutas e guarda histórias pessoais que atravessaram o século 20 e percorrem o 21 com sabor às vezes doce, às vezes ácido, mas sempre permeadas pela emoção.

A chuva torrencial não para, as estradas vicinais beirando extensas plantações de eucalipto se transformam em rios, GPS e telefone celular não funcionam e a falta de placas indicativas torna ainda mais difícil localizar Cordeiros, a 700 metros do Jequitinhonha. O jeito é perguntar a alguém e, por sorte, encontrar um motorista que conhece a mulher centenária e está na direção da comunidade. Uma hora depois, Maria Zélia Vieira, de 51, casada com um sobrinho de Letícia e acompanhante dela durante o dia, abre a porta da moradia simples e decorada com quadros de santos, aquecida pelo fogão a lenha e com um pé de pinha na porta. “Vamos entrar!”, convida com simpatia.

Sentada numa cadeira e vestindo saia e blusa de algodão, Letícia recebe o abraço dos visitantes e, a qualquer pergunta que não entende, faz uma concha com a mão em volta da orelha ou olha, meio na cumplicidade, para Maria Zélia e a afilhada Maria das Dores Freire Antunes, de 79, a Dodô, outra presença constante em casa. “A gente fica aqui de manhã e à tarde, mas, à noite, ela dorme sozinha. Só com Deus”, revela Maria Zélia, animada com a festa, que se completará amanhã, às 11h, com missa na Igreja de Santos Reis celebrada pelo arcebispo emérito de Montes Claros, no Norte de Minas, dom Geraldo Magela de Castro. “Ele sempre vem nesta época e a madrinha fica bem feliz”, emenda Dodô.

Até então quieta no seu canto, Letícia diz que ficou solteira e para titia, pois ajudou a cuidar dos numerosos filhos dos irmãos e irmãs. Teve, sim, um grande e único amor, o Zé da Dejanira, filho de mulher negra, ex-escrava, com um fazendeiro, romance de juventude impedido pelo pai severo e irredutível diante do namoro da moça branca com o homem “moreno”. No auge da adolescência, Letícia bateu o pé, chorou de raiva pelo preconceito, enfrentou o pai e passou a se encontrar às escondidas com o rapaz, embora sem qualquer intimidade. Na verdade, houve apenas um contato físico de saudosa memória. “Uma vez, estava distraída e o Zé veio andando por trás, de mansinho. Quando virei, me deu um beijo. Nem sabia o que era aquilo e pedi explicação.” A pergunta inevitável – “na boca?” – faz a senhora sorrir baixinho e pôr a mão no rosto. Alguns segundos de silêncio e admite ter sentido, no beijo inesquecível nos lábios, um certo calor no corpo. O namoro, no entanto, terminou em seguida. “Sempre sonho e rezei a vida inteira por ele. A minha juventude foi boa, mas o meu pai era muito bravo. Eu brigava, mas não teve jeito”, confidencia.

Zé da Dejanira se casou e Letícia, nome que em latim significa alegria, ficou sozinha e para “semente”, conforme ela mesma diz. Fazendo cara de mistério, conta que, nos tempos de namoro, ela e o amado combinaram que o primeiro que morresse entraria em contato com o outro, numa espécie de pacto. “E não é que, quando foi embora, ele veio me avisar?”, diz com a certeza de que a cena foi real, e não fruto da imaginação fértil dos eternos apaixonados.